Brasília,
Brazil
February 20, 2004
Lana
Cristina
Repórter da Agência Brasil
A biologia molecular brasileira promoveu o
casamento perfeito ao seqüenciar o genoma do vírus da lagarta da
soja, objeto do mais bem sucedido controle biológico de uma
praga no mundo. Com o uso de um inimigo natural da lagarta, o
programa é considerado o maior do mundo em área tratada com um
único agente de controle biológico.
O mapa genético do Baculovírus anticarsia, com seus 133
mil pares de base, foi seqüenciado no Laboratório de Evolução
Molecular e Bioinformática (Lemb), da
Universidade de São Paulo (USP),
unidade de referência viral no país. O trabalho, que teve a
parceria de outras instituições de pesquisa, foi publicado no
final de 2003 e permitirá estudar, entre outras variantes, os
fatores responsáveis pela virulência do microorganismo na
cultura da soja.
É a primeira vez que se seqüencia um vírus no país, o que
credencia o Lemb para a continuidade do mesmo trabalho com as
variedades genéticas de outros vírus: o HIV_1, tipo de vírus da
Aids mais comum no Brasil; o HCV, causador da hepatite "C"; o
hantavirus, que provoca síndrome pulmonar; e o vírus
respiratório sincicial, responsável por infecções do aparelho
respiratório principalmente em crianças. O laboratório
participa, no âmbito do Programa Genoma, da Rede de Diversidade
Genética de Vírus, cuja sigla em inglês é VGDN (viral Genetic
Diversity Network). Só o projeto Genoma Vírus recebeu em 2000
recursos da ordem de US$ 8 milhões, o que permitiu dotar o Lemb
da infra-estrutura necessária ao seqüenciamento.
"O baculovírus entrou como sub-projeto e o terminamos primeiro.
Para continuar o trabalho, temos cinco seqüenciadores
automáticos e equipamentos para clonagem. Além disso,
desenvolveu-se um trabalho de formação de pessoal, com a
especialização de profissionais em bioinformática, trabalho
essencial em seqüenciamento de genoma", conta o virologista
responsável pelo projeto baculovírus, Paolo Zanotto. Para
seqüenciar o genoma da principal praga da soja no país, a equipe
do Lemb teve a parceria dos laboratórios de biologia molecular
das universidades de Mogi das Cruzes (UMC), de Brasília (UnB),
da Flórida (EUA) e também da Embrapa Recursos Genéticos e
Biotecnologia (Cenargen). O custo isolado do trabalho com o
baculovírus foi de R$ 57 mil.
Zanotto acredita que a repercussão no meio científico será
bastante positiva para os laboratórios e unidades de pesquisa
envolvidos, bem como para o próprio país.
Afinal, é o primeiro vírus de DNA de grande tamanho seqüenciado.
O DNA do Baculovírus anticarsia tem 10 vezes o tamanho do
genoma do vírus do HIV. "É 10 vezes menor do que o de uma
bactéria. Mas, em sendo de vírus, é um genoma complexo", comenta
o pesquisador e professor da USP. Zanotto vai mais além e
acredita que o laboratório está credenciado inclusive para
seqüenciar o genoma de bactérias, que, em geral, têm de um
milhão a dois milhões de pares de base. Isso porque cada uma das
bases do B. anticarsia foi seqüenciada pelo menos seis
vezes. "Seqüenciamos, assim quase um milhão de pares de base",
conta Zanotto.
Há 25 genomas de baculovírus seqüenciados em todo o mundo, entre
eles os Autographa californicaNPV, Bombyx nori
NPV, Orgyia pseudosugata NPV, Lymantria disparNPV,
Spodoptera exiguaNPV, Plutella xylostellaGV e
Xestia nigrumGV. As siglas após os nomes científicos
significam nucleopoliedrovírus e granulovírus. Esses são os dois
gêneros da grande família de vírus oclusos, a Baculoviridae.
Eles têm dupla fita de DNA, envolta numa capa protéica, e
infectam especificamente vertebrados, sendo a maioria da ordem
Lepidoptera, ou seja, mariposas e borboletas. Cerca de
700 espécies de lagartas lepidopteras são suscetíveis aos
baculovírus. Devido à estrutura poliédrica, o vírus que ataca a
lagarta da soja pode ser chamado também de Anticarsia
gemmatalisNPV, ou ainda, por extenso, Anticarsia
gemmatalis nucleopolyhedrovirus. Os Baculoviridae
levam, assim, o nome da praga alvo, acrescido de seu gênero.
Dos baculovírus já seqüenciados, Zanotto classifica o
Anticarsia gemmatalisNPV o mais complexo e, por isso, o
trabalho confere ao Brasil autonomia genômica na área de vírus.
O estudo do vírus da lagarta da soja, a partir de agora, se
aprofundará cada vez mais, segundo ele. "Vamos estudar a
atividade dos genes do vírus, sua expressão, ou seja os RNA's
virais. Pode ser que se faça necessário também estudar
genomicamente o inseto, que é mais complexo ainda. Mas isso é
para um futuro mais adiante", explica.
Seqüências
Cerca de 20% do genoma do Baculovírus anticarsia já
estavam seqüenciados antes do projeto, graças ao trabalho de
duas biólogas da Embrapa Cenargem, especializadas em biologia
molecular e virologia, Marlinda Lobo de Souza e Maria Elita
Castro. "Eram seqüências isoladas, é bom ressaltar, trechos do
vírus com os quais tínhamos interesse específico em trabalhar.
Agora, com o genoma completo, temos os genes na devida ordem",
explica Marlinda.
Há pelo menos 10 anos, as duas estudam o B. anticarsia.
Marlinda, por exemplo, faz o que se chama análise do perfil de
restrição do DNA viral, desde 1984. Em resumo, é o estudo de
possíveis alterações genéticas no vírus em campo. Seu trabalho
consiste em analisar populações virais coletadas em campo, no
mesmo lugar. Isso foi feito com as safras de 84 a 97. Em suas
análises, Marlinda detectou variações no genoma e as registrou,
mas só agora, conforme ela própria explica, poderá saber o
porquê das alterações. "Com o genoma do vírus, poderemos ter uma
idéia mais clara da relação entre ele e o inseto e se existe,
por exemplo, uma co-evolução. Antes, só podia declarar que houve
alterações, e dizer em que trechos ocorreram, mas não podia
dizer por que", conta.
Apesar das variações genéticas, a pesquisadora conta que o vírus
continua virulento e específico contra a lagarta. Numa conclusão
aparentemente óbvia, a lagarta também continua suscetível.
"Acredito que as alterações, provavelmente, ocorreram como uma
forma do vírus melhorar sua performance no campo", conclui. O
B. anticarsia tem ação ao entrar no intestino da lagarta. O
poliedro, que é um cristal, é dissolvido, liberando uma proteína
chamada poliedrina. Dentro da estrutura poliédrica, há vários
viriuns, que são fitas de DNA empacotando uma molécula. Um
poliedro pode ter centenas de viriuns. Quando entram no
intestino da lagarta, com pH alto, os viriuns entram nas células
do inseto e se replicam, formando novas partículas. Aí reside a
complexidade dos baculovírus NPV, porque há vírus que constam só
de DNA com proteínas, nada mais. A partir da replicação, a
lagarta vai perdendo suas funções biológicas, muda a cor de
verde para esbranquiçada e o tegumento (a pele) fica flácido.
Para Marlinda, os benefícios do programa Baculovírus
anticarsia serão: aprofundar o conhecimento da biologia
molecular do vírus, na medida em que os genes e suas funções
serão melhor estudados; a realização de estudos comparativos com
outros vírus do mesmo grupo; entender melhor as alterações
genéticas; e ainda permitir e estimular estudos de produção "in
vitro".
Produção em laboratório
A chamada produção "in vitro", ou seja, em
laboratório, é algo almejado pelos pesquisadores que trabalham
no estudo de vírus. Mas a tarefa não é fácil, porque é difícil
repetir o que ocorre na natureza, em se tratando de vírus. A
dificuldade encarece a pesquisa, porque o próprio sistema de
cultivo tem custo alto. A produção no laboratório, no entanto, é
apontada como ideal por Marlinda, pois proporcionará, entre
outros avanços no conhecimento sobre o vírus, buscar estratégias
para evitar ou diminuir as alterações genéticas indesejáveis no
contexto do controle biológico.
Armazenamento de vírus é o trabalho da bióloga Maria Elita
Castro. Responsável pela Sub-rede de Coleções de Culturas de
Microorganismos da unidade em que trabalha, ela sabe bem o que é
dificuldade em se tratando de cultura em laboratório. Enquanto o
Banco de Germoplasma de Microorganismos tem uma coleção
expressiva de bactérias e fungos, o de isolados virais não passa
de 60 e nem todos estão caracterizados. Os microorganismos
armazenados são todos entomopatogênicos, ou seja, atacam algum
inseto e, por isso, são de interesse para utilização em ações de
controle biológico.
Depois da coleta, o vírus tem que ser identificado e
caracterizado. A caracterização é feita por análise microscópica
para que se confirme que vírus é aquele estudado. Nesse momento,
o pesquisador realiza um estudo morfológico aprofundado. O
Baculovírus anticarsia é isolado diretamente da lagarta,
depois que se obtém um macerado com água. O material tem que ser
purificado porque o caldo contém tecidos da lagarta, para que se
chegue ao vírus propriamente dito.
No caso do seqüenciamento, a colaboração do banco de baculovírus
foi a separação e purificação de poliedros e a extração do DNA
para produção de fragmentos menores. Os fragmentos eram, então,
isolados e clonados e, em seguida, inseridos num plasmídeo
bacteriano, que é uma molécula circular do DNA não integrada ao
cromossomo da bactéria capaz de auto replicação. O plasmídeo,
com o DNA do vírus, era então replicado numa célula de bactéria,
a Escherichia coli. "Precisamos realizar todo esse
trabalho para termos uma quantidade maior de isolados virais e,
assim, estudarmos, por exemplo, sua ação patogênica, de provocar
danos no inseto, e também o tamanho da virulência", conta Elita.
O armazenamento, completa a pesquisadora, é um papel importante
a ser desempenhado pelos bancos de vírus porque é a uma
excelente opção de se oferecer isolados virais para uso em
programas de controle biológico.
A sub-rede existe desde 2003, mas o trabalho de coleta,
identificação, caracterização e armazenamento de vírus é feito
desde 1990. O objetivo, agora, é ampliar a coleção. Por isso,
Elita não se cansa de peregrinar em congressos científicos
pedindo colaborações a colegas que tenham larvas infectadas que
as enviem ao Cenargen. Além do banco, que fica na unidade em
Brasília, há outros dois bancos de vírus no país, o da Embrapa
Soja, em Londrina (PR), também de B. anticarsia e o da
Embrapa Milho e Sorgo, de Spodoptera frugiperdaGV, em
Sete Lagoas (MG).
Além de boa dose de paciência para explicar a importância do
armazenamento de vírus, Elita conta com outro ponto de
estrangulamento em seu trabalho. É a necessidade de criar em
laboratório também o hospedeiro, ou seja, o indivíduo que o
inseto ataca. "Minha função enquanto banco de vírus é oferecer
esse material. Para isso, tenho que multiplicar. Para
multiplicar, tenho que ter o inseto. Portanto, uma coleção de
insetos em laboratório.
Com 60 tipos de vírus na coleção, são 60 lagartas necessárias",
relata.
Outra alternativa para efetuar a multiplicação seria cultivar
células que cresçam fora do organismo do inseto. Mais uma vez se
apresenta uma dificuldade. Para manter as células vivas é
preciso replicá-las de duas a três vezes por semana. "É um
trabalho que exige atenção constante e a replicação tem uma
desvantagem. O vírus perde a virulência nas passagens de uma
célula para outra e isso não é interessante no caso do
baculovírus", observa Elita.
O projeto da sub-rede tem duração de quatro anos e o objetivo é
estabelecer um banco nacional, por isso Elita quer reunir vírus
que atacam diversos insetos em diferentes regiões. "Queremos
trazer os exemplares da Embrapa Soja e da Embrapa Milho e Sorgo
também, para formar o banco central", finaliza. |